sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Papo & Prosa

Mentes que aprisionam

Paula Neiva e Karina Pastore

Todo mundo tem lá suas manias: verificar se o gás está mesmo desligado, somar os números da placa do carro da frente, organizar certos objetos com simetria e por aí vai. O jogador e galã inglês David Beckham, por exemplo, além de colecionar namoradas indiscretas, tem o costume de guardar sempre em sua geladeira um número par de latinhas de refrigerante. As manias são uma espécie de atavismo. Sob a ótica das teorias evolucionistas, algumas delas foram essenciais para o desenvolvimento e a preservação da espécie humana. De nossos antepassados longínquos, sobreviveram os mais prudentes e precavidos – justamente os "maníacos" por estocar alimentos, zelar pela prole e evitar as ameaças naturais. Ter uma ou outra mania, portanto, está dentro do quadro de normalidade. Elas nos tranqüilizam em relação a perigos, ajudam a organizar a rotina e até a passar o tempo.
Por diversos motivos, muitos dos quais ainda não totalmente esclarecidos pela ciência, as manias podem, no entanto, se transformar em doença. Chamado cientificamente de transtorno obsessivo-compulsivo, ou TOC, o mal ocupa o quarto lugar entre os distúrbios psiquiátricos mais freqüentes, com quase 7 milhões de vítimas no Brasil. Quem padece de TOC é acometido por pensamentos intrusivos ou idéias recorrentes e, para aliviar a angústia causada por essas obsessões, desenvolve comportamentos repetitivos – designados pelos médicos de rituais compulsivos. De todas as doenças da mente, o TOC é uma das que mais impingem sofrimento. Ele transforma seus portadores em "escravos de suas próprias idéias e ações", como define a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, autora do best-seller Mentes e Manias – Entendendo Melhor o Mundo das Pessoas Metódicas, Obsessivas e Compulsivas.
O pano de fundo para o TOC é um medo, assim como ocorre no caso dos fóbicos. Só que os portadores de fobias têm um medo irreal em relação a um objeto real – e evitam entrar em contato com o suposto perigo, para afastar uma crise. No caso dos obsessivo-compulsivos, é mais complicado. O que gera angústia é um pensamento que causa medo. Para se livrarem dele, adotam comportamentos compulsivos. Um dos quadros mais comuns do distúrbio é o que envolve o medo obsessivo de contaminação – um bom exemplo é o personagem de Jack Nicholson no filme Melhor É Impossível, que, entre outras manias, usava luvas quase o tempo todo, só comia com talheres descartáveis e não pisava nos rejuntes das calçadas. Alguns pacientes chegam a se lavar com produtos pesados de limpeza, como água sanitária e detergente, só porque encostaram em outra pessoa. Muitos não se contentam com um banho. Só se tranqüilizam depois de vários e longos banhos. "A diferença entre a mania saudável e a patológica é muito mais quantitativa do que qualitativa", afirma o psiquiatra Márcio Versiani, coordenador do Programa de Ansiedade e Depressão da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A doença se manifesta, enfim, quando as manias incapacitam para as atividades cotidianas.
As vítimas de TOC são como Sísifo, personagem do clássico Odisséia, poema épico de Homero. Como castigo por ter enganado Zeus, o deus dos deuses, Sísifo foi condenado a levar uma pedra enorme até o topo de uma montanha – para vê-la sempre rolar até o sopé e começar tudo de novo. Em O Mito de Sísifo: Ensaio sobre o Absurdo, o escritor francês Albert Camus (1913-1960) escreve: "Se esse mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria a sua tortura se, a cada passo, a esperança de conseguir o ajudasse? Sísifo, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição. É nela que pensa durante a sua descida". Os obsessivo-compulsivos têm consciência de que seus pensamentos e atitudes são completamente ilógicos. Ainda assim, como Sísifo, eles têm plena consciência de seu martírio, mas não conseguem se livrar da condenação imposta por suas mentes.
O impacto do TOC pode ser devastador. Depois de acompanhar cerca de 700 pacientes, médicos do Hospital Mount Sinai, em Nova York, concluíram que 70% deles tiveram suas relações familiares estraçalhadas pela mania patológica. Nove de cada dez obsessivo-compulsivos sofrem de baixa auto-estima. Não é de estranhar, portanto, que o transtorno freqüentemente se faça acompanhar de outros distúrbios psiquiátricos, sobretudo depressão, dependência do álcool e fobias específicas. Não bastasse a angústia provocada pela doença em si, o TOC faz com que o paciente carregue o peso da vergonha. Por isso, os doentes tendem a camuflar os sintomas e custam a procurar ajuda. "Entre o surgimento dos primeiros sinais e o diagnóstico de TOC, os pacientes levam, em média, dezessete anos", diz o psiquiatra Eurípedes Miguel, coordenador do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo, da Universidade de São Paulo. "O problema é que, quanto mais tempo um paciente passa sem tratamento, mais os sintomas se intensificam."
Sem ajuda, a doença é incontrolável. "É uma luta inglória, com derrota garantida", define Ana Beatriz Barbosa Silva, no livro Mentes e Manias. Os pensamentos repetitivos e as idéias fixas acabam congestionando o cérebro. Todos os rituais a que os pacientes se submetem como forma de afastar as obsessões estimulam ainda mais esses pensamentos. O contrário também dá na mesma: se eles tentam não executar as tarefas que se impõem, as obsessões ficam mais fortes. O círculo é vicioso: as obsessões deflagram compulsões que reforçam as obsessões. Não raro, os rituais compulsivos não guardam nenhuma relação lógica com a obsessão que os origina. É infernal.
"Eu chorava de ódio de mim mesma porque não conseguia mais controlar meus pensamentos", lembra a atriz Luciana Vendramini, de 32 anos. Os primeiros sinais da doença surgiram em 1996. Nessa época, ela só conseguia dormir se visse um táxi amarelo passando na rua. Em seguida, ela passou a se deitar se visse dois táxis amarelos, um atrás do outro. Depois, os dois táxis amarelos e uma pessoa andando na direção oposta. Uma das características do transtorno é a mudança de manias ao longo do tempo. Foi o que aconteceu com Luciana. Houve um momento em que a atriz condicionava seus atos ao tipo de idéia que lhe vinha à cabeça. Para sair do banho, por exemplo, Luciana precisava "congelar um pensamento bom" na mente. Obviamente, nessas horas, ela só pensava em coisas ruins. Um dia seu pai teve de invadir o banheiro e tirá-la de lá à força. Fazia dez horas que Luciana estava no chuveiro. Ela também enfrentou uma situação complicada quando, em 1997, conseguiu uma participação no extinto programa Você Decide, da Rede Globo, depois de um bom tempo sem trabalhar. "Eu criava rituais para começar o dia que podiam se estender por muitas horas", diz. Com medo de se atrasar para as gravações do programa, ela simplesmente não dormia. Luciana tinha de cumprir várias "obrigações" para sair do quarto: acordava, pegava um colar com a imagem de São Bento, fazia o sinal-da-cruz, colocava o pé direito no chão, depois o esquerdo e tinha de sair do quarto com um pensamento bom na cabeça. Quando saía do quarto, ia para o banho e começava a se lavar – primeiro pelo lado direito do corpo. Nessa etapa, havia novamente a obrigação de formular um pensamento bom. No ápice da doença, a atriz perdia um dia inteiro nesse labirinto de obsessões e compulsões. Avessa a medicamentos, Luciana relutou muito até se convencer de que deveria tomar remédio. Há dois anos, ela conseguiu controlar suas manias. Às vezes, ainda sente uma compulsãozinha por lavar as mãos repetidas vezes, mas não se deixa levar. "A doença não me pega mais", diz. Depois de dois anos de tratamento, Luciana voltou aos palcos.
As causas do TOC ainda não foram totalmente desvendadas. Sabe-se que o transtorno tem componentes ambientais e genéticos. Graças ao desenvolvimento de máquinas capazes de flagrar o cérebro em funcionamento, descobriram-se algumas das áreas cerebrais que servem de sede para as obsessões e as compulsões. As duas principais delas, o córtex órbito-frontal e os gânglios da base, são responsáveis pelo processamento das informações recebidas e pelo controle do medo. Já foi estabelecido também o papel da substância serotonina no desenvolvimento da doença. Produzida no cérebro, a serotonina está associada às sensações de prazer e bem-estar. Por isso, o tratamento medicamentoso do TOC ganhou impulso no fim dos anos 80, quando surgiram os primeiros antidepressivos criados especificamente para manter um nível saudável de serotonina no cérebro – são os remédios da família do Prozac. Dos medicamentos antigos, os tricíclicos, são usados apenas aqueles cuja ação está concentrada na serotonina. O mais usado deles é a clomipramina, vendida sob o nome comercial de Anafranil. O TOC não tem cura, mas pode ser controlado. A combinação de antidepressivos com psicoterapia reduz em até 80% a manifestação dos sintomas. A terapia mais utilizada é a comportamental-cognitiva, em que o terapeuta tenta convencer o doente de que suas preocupações são infundadas. Para isso, ele não só usa argumentos lógicos, como expõe o paciente ao objeto de suas aflições. Os primeiros sinais de melhora começam a surgir entre duas e quatro semanas após o início do tratamento. A medicação é mantida por, ao menos, um ano. O objetivo é diminuir os riscos de recaída.
O TOC foi descrito pela primeira vez em 1838, pelo psiquiatra francês Jean-Étienne-Dominique Esquirol. O caso era o de Mademoiselle F., uma jovem de 18 anos que foi tomada pela aflição de que, um dia, ao visitar a tia, pudesse roubar-lhe algum pertence. Mais tarde, a moça passou a ser acometida por rituais de verificação. Filha de um comerciante, Mademoiselle F. gastava horas e mais horas fazendo e refazendo as contas da loja. Mesmo que os resultados conferissem, a jovem não se convencia. Suas aflições, pouco a pouco, foram aumentando. Ela começou a ter de lavar as mãos sempre que encostava em alguma coisa. Gastava mais de três horas com a higiene diária. Em seguida, passou a não sair mais de casa com medo de se sujar e cair doente. Na época, com muita propriedade, Esquirol usou a expressão "loucos razoáveis" para definir os obsessivo-compulsivos: "O paciente é constrangido a realizar atos (...) que sua consciência desaprova, mas sobre os quais ele não tem controle voluntário (...) É a monomania instintiva. Os monomaníacos têm sempre motivos mais ou menos plausíveis para se justificar".
O conceito de neurose obsessivo-compulsiva, no entanto, só seria concebido no início do século XX, por Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Para ele, os pensamentos obsessivos e os rituais compulsivos surgem como resposta inconsciente a determinados desejos que levam a um estado de ansiedade. Por mais desconfortáveis que sejam os sintomas da obsessão e da compulsão, eles seriam menos incômodos do que enfrentar conscientemente as razões do tormento psíquico. O estudo clássico sobre a doença é O Homem dos Ratos, publicado em 1909. Nele, Freud conta a história de um jovem que vivia atormentado pela idéia de que seu pai ou a moça por quem era apaixonado pudessem ser vítimas do ataque de ratos. A obsessão pelo bicho surgiu depois de ele ouvir o relato de um tipo de tortura muito temido naquele tempo. O prisioneiro era amarrado nu, de bruços, com as pernas afastadas. Sobre as nádegas dele, o carrasco colocava, de cabeça para baixo, um balde cheio de ratos. Por meio de técnicas psicanalíticas que ainda estavam em seus primórdios, Freud descobriu que a obsessão do jovem paciente se relacionava ao desejo inconsciente que ele tinha de se opor às vontades do pai. "Ele resolveu esse conflito caindo doente. Assim, evitava resolvê-lo na vida real", escreveu Freud.
Alguns distúrbios psiquiátricos podem ser confundidos com o TOC, como o sexo compulsivo, o jogo patológico, a hipocondria, a bulimia e a anorexia, entre outros. A principal diferença é que os pacientes desses transtornos não têm consciência de que seus pensamentos e atitudes são absurdos. A anorexia, por exemplo, é caracterizada pela preocupação excessiva com o peso corporal e a quantidade de calorias ingeridas. Por mais que o paciente seja magro ou emagreça, ele sempre se vê como gordo e deixa de comer. Um obsessivo-compulsivo que desenvolve um ritual em que deixa de se alimentar não o faz porque se sente feio. Toma esse caminho para afastar de sua mente algum pensamento catastrófico. Além disso, ele tem consciência de que não comer faz mal. Prisioneiro de sua mente, no entanto, ele prefere passar fome a ter de pensar em coisas ruins.
Mesmo pessoas saudáveis são suscetíveis a apresentar traços (leves) de obsessão-compulsão em determinados momentos da vida. "Em situações de stress, elas tendem a ritualizar", afirma o psiquiatra Márcio Bernick, coordenador do Ambulatório de Ansiedade, da Universidade de São Paulo. A maioria dos que embarcam para o exterior tem a mania de, a caminho do aeroporto, conferir inúmeras vezes se o passaporte e a passagem não ficaram para trás. É, sem dúvida, um ritual compulsivo de verificação. Quem já se apaixonou sabe que a paixão é terreno fértil para as obsessões e as compulsões. Até a adolescência, a vida de meninos e meninas é marcada por rituais compulsivos que ajudam no desenvolvimento. As crianças pedem sempre para ouvir a mesma história, como uma forma de estabelecer uma rotina interna. Por volta dos 6 anos, dedicam-se a álbuns de figurinhas, coleções de carrinhos ou de bonecas, o que lhes propicia interagir com o mundo e aprender a desempenhar papéis sociais. Na idade adulta, certos sintomas podem aparecer, sobretudo entre as mulheres grávidas ou que acabaram de ter filho. No último mês de gestação e três meses depois do parto, não é incomum que as mães apresentem uma preocupação obsessiva em relação à criança. Naturais e esperados, os rituais de controlar se está tudo bem com o bebê são importantes para a segurança e a saúde física e emocional da criança.
A reviravolta hormonal e psicológica pela qual as mulheres passam durante o período de gravidez é tão acentuada que algumas das que têm predisposição genética à doença desenvolvem o transtorno a partir dessa fase da vida. Não há levantamentos estatísticos sobre o assunto, mas, segundo os médicos, a prática clínica mostra que um de cada três pacientes de TOC é mulher e apresenta os primeiros sintomas do mal durante ou logo após a gravidez. Nos outros doentes, o distúrbio aparece entre o final da adolescência e o início da idade adulta. Atinge homens e mulheres, ricos e pobres, ocidentais e orientais em igual proporção. A boa notícia é que a ciência hoje consegue manter o TOC sob controle. Ninguém mais está condenado a viver refém da própria mente.
 
Postagem enviada por: Luiz Alberto Bernardo

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